sábado, 3 de outubro de 2009

O Caminho



Li há uns meses atrás este texto da Fernanda Torres, que me surpreende sempre com as ideias dela.


Não li a Odisseia. Tenho mais de uma tradução em casa, mas morro de medo de encarar uma obra desse calibre. Tanto com Homero quanto com Dante e Camões, o máximo que consigo fazer é abrir uma página aqui, outra ali, para fechar em seguida, transferindo para a próxima encarnação a tarefa de dar conta de tamanho petardo. Por se tratar de uma compilação de lendas do Mediterrâneo, mar onde nasceu, com a Grécia, a civilização ocidental, não conheço ninguém que já não tenha ouvido falar do Ciclope, de Calipso ou do errante Ulisses. Minha bisavó Maria, nascida na Sardenha, costumava narrar trechos inteiros da Odisseia para a minha mãe como se fossem o causo da Mula sem Cabeça ou do Curupira. E são. Minha bisavó era analfabeta e morreu sem saber de Homero, mas, naturalmente, dava continuidade à oralidade das lendas que o autor resolveu, em um remoto dia, botar no papel.

Há uns sete anos comprei para meu filho uma minissérie sobre a Odisseia produzida para a TV francesa. Foi uma tentativa de fazer o Olimpo disputar com os Power Rangers o imaginário da cabeça do moleque. Funcionou. Meu guri ficou impressionadíssimo com a soberba de Ulisses ao bradar que havia vencido a Guerra de Troia graças apenas a sua esperteza humana, e mais espantado ainda com o castigo que Posêidon lhe impingiu, condenando-o a vagar por anos e anos pelos mares bravios, longe de sua idolatrada Ítaca.

Pois devo admitir que essa série da TV francesa me apresentou a uma das passagens mais tocantes da Odisseia: depois de passar cinco anos, que lhe pareceram cinco dias, na companhia de Circe, feiticeira com o mau costume de transformar homens em porcos, Ulisses descobre que, se descer ao mundo dos mortos, o infernal Hades, Tirésias, o adivinho, lhe dirá como – e se – retornará para casa. Ele enfrenta os vapores de enxofre do mundo abissal, encontra a mãe que nem sabia estar morta, passa pelo panteão de guerreiros gregos e por boa parte dos personagens das tragédias gregas até dar com o velho Tirésias. Este, ao perceber a ansiedade do herói por encerrar sua viagem e rever a mulher e o filho, ironiza: "Você ainda não entendeu, Ulisses? A vida é o caminho".

Essa frase me acordou como um balde de água fria. Todas as vezes que me vejo assassinando meu tempo, desejosa de alcançar um objetivo que insiste em se projetar no futuro, lembro de Tirésias na minissérie da TV francesa e tento fazer jus à poderosa conclusão de que a vida é o caminho.

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